Uma figura esquecida

Antônio de Oliveira 

Refiro-me àquele que abre covas para enterrar os mortos. Que é aquele que põe uma última pá de cal sobre as nossas vaidades e pretensões; aquele que contribui para a queda de uma instituição, por exemplo, coveiro da monarquia; aquele que desafia, depois de mortos, imperadores e poderosos. O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, não quer ser “o prefeito coveiro”. 

Estão fechadas ao público, em tempos de coronavírus, as capelas ou câmaras-ardentes, onde se realiza um velório ou onde se deixa o falecido até a hora do enterro. O nome tem a ver com as velas acesas. Esse assunto é lúgubre, como lúgubre é o confinamento que estamos vivendo e as mortes que estão ocorrendo. Lúgubre, mas real. Nem o mar nem a maré estão pra peixe.

Na instalação solene da Constituinte, aos 2 de fevereiro de 1987, em Brasília, um garoto maltrapilho, caixa de engraxate a tiracolo, fura os cordões de isolamento. Inquirido pelos repórteres sobre o que esperava da Constituinte, responde, na expectativa de uma constituição cidadã: – PÃO!... 

A figura do engraxate está em extinção. Hoje se usa tênis até com gravata. Antigamente se dizia “quede” e era usado por esportistas. Era abotinado e de lona. Quanto ao “pão”, continuam atuando os fazedores de covas, profissionais ou não, que enterram gente morta de fome depois de uma vida “severina”. Desses, a ação do coveiro precede à cobertura de uma cova rasa, com palmos medida, se tanto. Daqueles, precede â construção de suntuosos mausoléus. Do Estatuto Universal do Homem e da Mulher consta esta cláusula pétrea: “Ao pó tornarás”.

No sepultamento de um ilustre cidadão, o coveiro foi longamente focalizado pelos câmeras, levando-o a roubar a cena. Como personagem coadjuvante, o coveiro representa o último momento da história de cada pessoa que ele en-terra. Não é à toa que a palavra humildade tem sido associada a “humus”, em latim, significando terra. Ultimamente, tantos mortos, vítimas de pandemia. Valha-nos Deus!

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