Reportagem especial: Machismo é a principal causa de feminicídio, afirma psicanalista

 

Ana Laura Corrêa

A primeira agressão aconteceu na rua, depois de algum tempo de namoro. No meio de uma discussão, o rapaz deu uma cabeçada em Camila*, então com 18 anos, que ficou com o olho roxo. A violência, com murros e tapas, continuou durante todo o relacionamento, que durou nove meses. Neste tempo, todas as semanas, a jovem apanhava.

─ Ele me dava tapa na cara que me deixava surda, machucava minha boca a ponto de sangrar. Eu tentava revidar, no entanto, ele era muito mais forte do que eu. Então eu procurava me defender, saindo de perto dele. As marcas das agressões eu tampava com maquiagem, mas ele não batia muito na cara, acho que para ninguém desconfiar. Porém minhas pernas e meus braços estavam sempre roxos, e aí a roupa escondia — revela.

No início do relacionamento, segundo Camila, o ex-namorado era uma pessoa tranquila e não era tão ciumento. Apesar disso, o rapaz já a privava de fazer algumas coisas. Com o passar do tempo, começaram as agressões verbais, que só foram piorando. A violência do ex-namorado sempre se dava por motivos fúteis.

─ Se eu conversasse ou cumprimentasse um homem, com ele ao lado, era motivo para eu apanhar quando chegasse em casa. Não podia usar short ou blusa com um pouco de decote, mesmo no calor. Em todas as brigas ele me chamava de vagabunda, mentirosa, dizia que eu não valia nada, era feia e ninguém iria me querer, além de me ameaçar. Ele ainda fazia chantagem do tipo “seus amigos ou eu”. Assim, eu não podia ter amigos homens nem mulheres. Ele era uma pessoa muito machista ─ afirma.

A família de Camila desconfiava das agressões e falava para a jovem, que sempre negava a violência, terminar o relacionamento. A mãe até acendia vela e pedia para Deus. Hoje, Camila diz que estava cega. Na época, a jovem acreditava que amava o ex-namorado.

— Depois das agressões, ele falava que não iria fazer isso de novo, que me amava demais e não conseguiria viver sem mim. Dizia ainda que tinha depressão, e eu, boba, acreditava e perdoava. Um dia, no entanto, ele surtou como sempre fazia e aí percebi que ele nunca iria mudar. Eu já estava entrando em depressão, não podia viver minha vida nem ter amigos. Neste dia cheguei à conclusão de que eu não merecia viver daquele jeito e coloquei um fim no relacionamento via rede social mesmo. Depois disso nunca mais o vi. Ele insistiu, mas eu o ignorei completamente — explicou.

Violência

Apesar de Camila não ter procurado ajuda profissional, o serviço de atendimento psicossocial gratuito para mulheres vítimas de agressão existe na Delegacia das Mulheres em Divinópolis. A psicanalista Maria Denisa Santos trabalha no local há quatro anos e já atendeu, neste período, diversas vítimas de violência. Segundo ela, as mulheres atendidas geralmente estão deprimidas, têm baixa autoestima e se consideram incapazes de enfrentar o futuro sem o companheiro.

— A violência é tão complexa que a mulher relata que esta sendo agredida e fala que não quer se separar do marido. Ninguém consegue explicar por que ela fica sem essa noção da realidade, dos agravos e do risco que está correndo. O que a gente conversa aqui, então, é para chamar a atenção dela para tudo isso. Trabalhamos também o empoderamento, para que ela acredite que tem condição de trabalhar e promover seu autossustento — explica a psicanalista sobre o atendimento prestado às vítimas.

Ciclo

A violência doméstica contra a mulher se desenvolve em um ciclo. No Brasil, segundo Denisa, o processo envolve, geralmente, em três etapas.

— Ele começa com a agressão verbal. No próximo estágio já ocorre a física. Em seguida, vem a manipulação feita pelo agressor, quando a vitima esta preparada para denunciá-lo. A mulher entra, então, em um período de confusão porque ele é o marido, o pai dos filhos, é uma pessoa sobre a qual ela criou expectativas — explica a psicanalista.

Para ela, o combate à violência contra a mulher deve envolver ações de todos os setores da sociedade, como a educação e a saúde.

— Não adianta apenas o sistema de segurança agir, porque ele atua quando o fato já ocorreu. Em relação aos casos que já aconteceram, deveria haver um monitoramento ou alguma política pública mais rígida, para que a coisa não ficasse tão à mercê da sorte — argumenta.

Feminicídio

Em alguns relacionamentos, a rejeição por parte do homem do término da relação faz com que se atinja o último estágio do ciclo de violência, que é o feminicídio. Na região do 7º Departamento de Polícia Civil, da qual fazem parte 50 municípios, incluindo Divinópolis, foram registradas, em 2017, 41 tentativas de homicídio contra mulheres, sendo que 20 tiveram motivação passional ou aconteceram em decorrência de violência doméstica.

No mesmo ano, foram registrados 32 homicídios contra mulheres, 14 deles passionais ou devido à violência doméstica. O machismo, de acordo com Denisa, é o principal motivo que leva ao feminicídio.

─ A mulher é vista pelo homem como objeto de posse, e ele não consegue conviver com a ideia de que pertencia a ele é do outro. Quando se fala em término de relacionamento, ele fica emocionalmente instável, tem crise de tremor, suadeira. Isso é uma situação grave. Leva um bom tempo até a pessoa entender que não tem mais nada com a outra. Ele tem que fazer tratamento, trazer relatório psiquiátrico e de acompanhamento psicológico — explica a psicanalista. 

Denúncias

As histórias de violência parecem, infelizmente, se multiplicar. Basta passar alguns minutos em uma das cadeiras da recepção da Delegacia da Mulher em Divinópolis para ouví-las. As vítimas de violência chegam a todo o momento. A sala da titular da Delegacia, Maria Gorete Rios, está sempre cheia. Entre um atendimento e outro, a delegada, que atua há 15 anos na função, deu algumas orientações para mulheres vítimas de agressão.

─ Pode-se registrar um Boletim de ocorrência (BO) na Polícia Militar (PM) ou também procurar a Delegacia de Mulheres para registrar um boletim ou ainda trazer um BO já registrado pela PM. Se ela quiser representar, vai ser submetida ao exame de corpo de delito e será aberto um inquérito. Caso a vítima deseje também pedir a medida protetiva, isso será feito. Se a mulher tiver medo de chamar a polícia, ela pode ligar para o 180 e a gente faz uma investigação — explica a delegada.

Em Divinópolis, a Delegacia de Orientação e Proteção à Família fica na rua Goiás, 1983, na Vila Santo Antônio.

 

*Para preservar a identidade da entrevistada, o nome é fictício.

 

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