Quebrando estátuas

Domingos Sávio Calixto

A morte televisionada de George Floyd (25 de maio, Minneapolis, EUA) pela polícia local, especificamente envolvendo o policial Derek Chauvin (coincidentemente “chauvinismo” significa a característica de alguém excessivamente orgulhoso de suas atividades militares), causou protestos em muitos países do mundo (no Brasil nem tantos, já que por aqui é quase normal outros Georges Floyds morrerem, inclusive crianças Georges Floyds, em favelas Georges Floyds).

No embalo dos protestos surgiu acontecer a destruição de monumentos construídos em homenagem à figuras históricas envolvidas com o tráfico negreiro, como as estátuas de Edward Colston, de Cristovão Colombo e outros.

No Brasil esse fenômeno exige uma análise cautelosa, a qual perpassa pela figura dos bandeirantes, pela figura de Domingos Jorge Velho – executor de Zumbi dos Palmares – esbarra na estátua do traficante de escravos Joaquim Pereira Marinho situada bem no centro de Salvador-BA. 

Pois é da Bahia que vem a primeira preocupação e ela envolve o baiano – talvez – mais ilustre: o jurista soteropolitano Rui Barbosa (1849 – 1923), por conta da acusação de outro baiano famoso, o médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues (1862 – 1906).

Quando do golpe da república, patrocinado pelos donos de escravos descontentes (1889), Rui Barbosa assumiu o Ministério da Fazenda no governo provisório de Deodoro da Fonseca. Segundo Nina Rodrigues, o então ministro da Fazenda teria dado ordens para a total destruição de documentos relativos à escravidão, conforme um despacho de 14 de dezembro de 1890 e devidamente executado por Tristão de Alencar Araripe, o qual seria o próprio sucessor de Rui Barbosa no ministério.

O sociólogo e escritor Gilberto Freyre também teria imputado a Rui Barbosa tal ato de destruição de parte da memória nacional. Essa “queima de arquivos” da escravidão se refere a todos os documentos do ministério envolvendo livros de matrícula, recolhimento de tributos por propriedade, controle aduaneiro e todos aqueles que comprovariam a natureza fiscal e tributária dos senhores de escravos da época.

Claro que essa perda documental dificultou o pagamento de indenização, pela república, aos escravocratas que pleiteavam algum ressarcimento pela perda da respectiva “mão de obra” perdida.

Estranhamente, a tal república “proclamada” abriu debates para as indenizações dos donos de escravos, mas jamais mencionou igual oportunidade indenizatória às famílias dos mortos, mutilados, desaparecidos, lesados, estuprados e coisificados escravos libertos. Muito pelo contrário, a posterior legislação republicana se encarregou – com êxito – de conter os ânimos dos negros eufóricos mediante uma perseguição que insiste em acontecer até hoje.

Ora, em um país com pouco mais de 500 anos, dos quais quase 350 foram “dedicados” à escravatura, torna-se difícil separar historicamente quem não foi conivente com ela. Daí, se essa onda de quebrar estátuas chegar por aqui vai haver muito concreto em via pública, sobrando até para Rui Barbosa.

Talvez não seja o caso de destruição, mas de construção. É disto que o Brasil precisa, da construção da sua história, da sua identidade desbranqueada, porque uma coisa é certa, o sangue do Brasil – e do mundo –  é comprovadamente africano.

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