Paranoias epidêmicas*
Maria Cândida
Minha irmã me ligou apavorada às 11h da noite. O motivo: uma barata invadira o seu banheiro. Certamente trazia em suas patinhas infectas milhões de coronavírus a circular por redes sanitárias precárias do terceiro mundo. De fato, o vírus foi detectado em amostras colhidas em nossas redes de esgoto, bem antes de ser percebido na China. Ou seja, trata-se de um ser sorrateiro, com epidemiologia ainda pouco conhecida. Neste momento, aliado a uma monstruosa barata, ganhou proporções ainda mais devastadoras.
A barata ficou parada até perceber a voracidade do chinelo. Escapou e desapareceu com a agilidade de um ninja!
Para onde teria ido levando o vírus mortal em suas entranhas?!
Esse foi o motivo de um telefonema às 11h da noite! E agora, o que fazer com a barata?!
Aqui vale um parêntese: minha irmã, cantora lírica, retornou ao Brasil depois de viver mais de 50 anos na Alemanha. Chegou de mala e cuia quase junto com o corona. Provavelmente, o corona atrasou um pouco por problemas alfandegários e de registro epidemiológico. Mas certamente estavam no mesmo voo.
Mas a barata não. Ela é ser local a ameaçar a quase intransponível casamata alemã. Ser medonho e pouco afeito ao diálogo.
Essa breve introdução reproduz fielmente o drama e o medo dos dias de hoje. Já não sabemos onde está de fato o inimigo.
Ao perceber a minha perplexidade, ela justificou o telefonema às 11h da noite:
“Para você é fácil de entender, mas para nós, leigos, o bicho está em todos os lugares. Até na barata, que agora já divide o apartamento comigo”.
Ela estava certa! O medo obscurece a racionalidade. E isso abre espaço ao imaginário mágico, para prevenir e tratar um problema que ameaça a todos e transformou nossas vidas numa pandemônica existência. É neste contexto onírico que surgem a cloroquina, a ivermectina e a até o tenebroso ozônio por orifícios pouco usuais...
Pacientemente, tentei explicar que a barata não admite proximidade social, particularmente com o vulto de um chinelo. Ela não dialoga, por isso, não emite perdigotos. Barata não dá três beijinhos, não abraça, não enturma e aglomera apenas se nossos princípios básicos de higiene assim permitirem. Portanto, ela não é o inimigo.
Com um pouco de didática, acredito que ela até usaria máscara. Para sobreviver, baratas não se preocupam com a estética. Por isto, sobreviveriam até a bomba atômica. Vírus ameaçam humanos, mas não às baratas. Preocupação de barata é com chinelo! Difícil é convencer meu amigo Gustavo Werneck dessa conclusão. Ao compartilhar com ele o drama da minha irmã, imediatamente concluiu: “Mais um malefício das cascudas”. Segundo ele, “um amigo havia pego a doença ao entrar em contato com a barata da vizinha, essa espécie sorrateira”.
Ele e outros milhares de habitantes desse planeta, além da minha irmã, consideram a barata como uma aliada do corona. Vieram para ficar... Tenho que concordar com eles: ambos vieram para ficar. Aliás, não é bem assim. Estavam aqui antes de nós. Tanto a barata quanto o corona. Nós somos os intrusos. Uma iguaria a mais a ser degustada.
Na evolução das espécies, eles já estavam aqui, milhares de anos antes de nós. Sim! O corona há bilhões de anos. A barata, bem mais jovem e vaidosa, há menos tempo. Ou seja, quem invadiu a casa de quem?!
Recomendei à minha irmã: faça um pacto com ela. Será melhor para vocês duas... Divida a casa e esqueça o corona que ela pode trazer nas patinhas. Mas, se ela tossir, ou espirrar... Ameace com o chinelo. Não tente eliminá-la, um escorregão e uma prótese de quadril pode sair bem mais caro. Com jeitinho, até o Messias tem sido visto usando máscara! Por que não uma barata?!
(Carlos Starling,
Estado de Minas,
29.08.2020)