CREPÚSCULO DA LEI – XI*

Uma juíza (?) de Campinas (SP), 5ª Vara Criminal, em recente sentença condenatória de 30 anos de reclusão por crime de latrocínio – roubo com morte da vítima – manifestou-se nos autos processuais da seguinte forma: “Vale notar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”.

A questão já seria extremamente constrangedora para um país que não se considera racista, a não ser por outro sórdido detalhe: não se trata de um pensamento isolado. Não só o judiciário possui outros membros com igual preconceito (alguns falam em dar tiro na cabeça de quem for visto com fuzil e outros fazem deboche de acusados com deficiência física - nove dedos, por exemplo), mas é um fenômeno bem extensivo.

Em linhas gerais, a elite brasileira (?) é extremamente preconceituosa - conforme já se manifestou o sociólogo Jessé Oliveira em diversas obras - e tal preconceito está intimamente ligado aos nossos 350 anos de brutal escravidão (1530 – 1888), ao arrepio das torturas, estupros e mortes violentas de africanos sequestrados.

Ocorre que a escravidão brasileira, seguramente a mais cruel da história, não poderia se sustentar por tanto tempo sem um prévio sentido de desrespeito - em conúbio com ignorância - e arrogância em prol do enriquecimento ilícito, lastro que até hoje não foi devidamente contido.

No século XIX, um cientista italiano chamado Cesare Lombroso (1835 - 1909), sob a influência de Giovanni Della Porta e, posteriormente, Charles Darwin, desenvolveu estudos que canalizavam para uns elementos estéticos da pessoa (aparência) como indicativos determinantes da figura do criminoso, o que depois seria descrito como a insustentável tese do criminoso-nato. O crime estaria ligado ao ser, e não ao fazer.

Grande parte do espectro teórico sobre o criminoso-nato chegou ao Brasil escravagista nas encomendas acadêmicas dos filhos de fazendeiros formados advogados em terras portuguesas - universidade de Coimbra - e pegou em cheio os negros desta terra. As teses de Lombroso atingiram fácil e rapidamente a comunidade africana, a qual se viu (ainda mais) submissa a um discurso científico (?) que lhe reduziria bem pior à condição de subespécie humana, meros semoventes errantes.

Outro episódio que demonstra extremado preconceito de raça foi a massacre de Canudos, na Bahia (1896 a 1897), onde aproximadamente 25 mil mestiços foram vítimas do primeiro genocídio da recente inaugurada república brasileira, mediante as ordens do bondoso presidente Prudente de Morais, significando precedentes históricos de chefes da República racistas na história do Brasil.

Aliás, a cabeça de Antonio Conselheiro, líder da comunidade de Canudos e mencionado até por Euclides da Cunha, foi devidamente cortada e encaminhada à Universidade da Bahia para ser estudada pelo professor Nina Rodrigues, um adepto das teses dele mesmo, Lombroso.

A questão não parece tão distante quando certos líderes (?) homenagearam torturadores pedófilos, alegaram que a filha veio de uma fraquejada; falaram que não estuprariam determinada mulher porque ela era muito feia; ofenderam indígenas e quilombolas; que foram contrários ao programa bolsa-família; contrários ao Mais-Médicos; contrários às farmácias populares; contrários aos direitos trabalhistas e a uma aposentadoria digna; que criminalizaram pobres; que eram contra as cotas de negros nas universidades; que queriam armar os latifundiários...

Todavia, eis o que é pior: colocaram o Brasil acima de tudo, mas lamberam as botas americanas, tal qual um vira-latas sob um olhar de desprezo do próprio dono, enquanto este lhe ganhava o petróleo, com tecnologia e tudo, a um preço vil, e, ainda, afundava-lhe o agronegócio ao tomar-lhe um cliente chinês disposto a comprar historicamente dez milhões de toneladas de soja.

Se bandido tem padrão, há outros e muitos outros.

(*) Dedicado ao pequeno Arthur, que se foi precocemente aos sete anos, vítima de doença e outras tristezas.

        

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