O semeador na sociedade líquida

Raimundo Bechelaine 

Na obra “A República”, Platão propõe a parábola conhecida como o mito da caverna. Jesus costumava ensinar através de parábolas. Uma delas é a parábola do semeador. Foi a leitura evangélica da missa de domingo passado. A semente é a palavra de Deus e nós, os ouvintes, somos os vários tipos de terra.

É interessante observar que Jesus mostra-se aí um psicólogo e sociólogo “avant la lettre”. Revela intuições que hoje são tratadas em ciências como a psicologia e a sociologia. Ao mencionar as diferentes características da terra, os ouvintes, Jesus refere-se às condições psicológicas e sociológicas em que eles se encontram.

Aos domingos, ao meio-dia, na Praça de São Pedro, o papa reza a oração do Angelus com o público, seguida de breve reflexão. Domingo passado, ele disse: “Existem diferentes formas de receber a palavra de Deus. Podemos fazê-lo como um caminho, onde as aves vêm e comem as sementes. É a distração, um grande perigo do nosso tempo. No terreno pedregoso, a semente brota depressa, mas seca rapidamente, porque não consegue criar raízes profundas”. Aqui, segundo Francisco, é a superficialidade da atenção de quem ouve.   

Reconheçamos que o superficialismo e a distração não ocorrem somente na seara do semeador religioso. O sociólogo e filósofo polonês Zigmunt Bauman cunhou a expressão “sociedade líquida” para expressar o ambiente social em que vivemos, nesta época chamada de pós-modernidade. Usa também outra expressão: “sociedade de consumidores”. Com isso, descreve a nossa relutância em assumir propostas e valores duradouros. Vivemos envolvidos no consumo de artefatos e modismos, que atinge as nossas próprias relações humanas. Bauman chega a usar o termo compromissofobia.

No livro “A arte da vida”, faz expressivas citações que retratam o clima cultural. Por exemplo, Jean-Claude Kaufmann: “Todo mundo busca ansiosamente a aprovação, a admiração ou o amor nos olhos dos outros”. Ou Gilles Lipovetsky: “A cultura do sacrifício está morta”. Neste contexto, refere-se ainda às particulares condições que acometem a classe média e até a atividade artística.

Tomando a ação de semear em sentido amplo, são muitos ou todos os semeadores que se encontram em extrema dificuldade, no exercício de seus papéis sociais: os pais e mães e a família enquanto tal, a escola e os professores, os pensadores e cientistas, os comunicadores e os meios de comunicação, as religiões, os legisladores e juristas, os políticos e as instituições do Estado. Enfim, o mundo e nós mesmos nos tornamos líquidos. [email protected]

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