O riso e o cocô

O riso e o cocô

O italiano Umberto Eco (1932 – 2016) foi um dos maiores escritores contemporâneos, notadamente pela sua capacidade de transitar com sua obra pela filosofia, pela história, pela linguística e pela semiótica (estudo dos signos, dos significados e dos processos de significação) – sua especialidade. Seu trabalho mais conhecido é o livro O Nome da Rosa (1980), o qual acabou por se tornar também um grande sucesso cinematográfico (1986).

O livro, em ficção medieval, trata de eventos criminosos ocorridos dentro de um mosteiro beneditino no século XIV, mais precisamente 1327, provavelmente ao norte da Itália, no período inquisitorial. Neste mosteiro estava designado um encontro de religiosos para debaterem um tema teológico de suma importância: Jesus e suas roupas. A questão que pretendiam debater é se Jesus era dono delas (defendido pelos dominicanos) ou não (defendido pelos franciscanos).

Ocorre que, paralelamente ao encontro, misteriosos homicídios ocorrem naquele local sagrado (?) e o protagonista William de Baskerville - frade franciscano - com ajuda de seu aprendiz, Adso de Melck, usa de métodos racionais para sobrepor-se à escatologia místico-demoníaca que dava significados tenebrosos aos eventos, ressaltando um paradoxo entre a racionalidade como orientação divina e a religiosidade eivada de misticismo operando com ajuda dos temores diabólicos, e que junto vão dando toda a estrutura da obra.

Há uma passagem no livro, ocorrida na biblioteca do mosteiro - scriptorium - onde lá se encontrava o frade William, perguntando e investigando sobre os homicídios. Estava também manuseando alguns trabalhos escritos por uma das vítimas e, para assombro, fazendo uso de um estranho objeto de metal em “v” invertido, apoiado sobre o nariz, o qual sustentava um par de lentes de vidro que, de alguma maneira, facilitava sua leitura (...).

Em determinado momento, frade William se vê numa discussão com o venerável frei Jorge de Burgos sobre o significado do riso. Frei Jorge alegava que o riso expõe a alma ao ridículo e promove um chamamento às forças diabólicas em face da negligência do espírito. Menciona que jogando com o riso arrasta-se para discursos vãos. E ainda cita: “Jesus não ria”!

Frei William, por sua vez, contestou respeitosamente o ancião, alegando dentre outras coisas que, quando dos episódios das pedras na mulher adúltera e dos debates com Caifás, certamente Jesus usava de segurança e humor nas falas e gestos... Ora, isto foi o suficiente para frei Jorge, tomado daquela ira que socorre aqueles em desvantagem, proferisse a frase: “Tum podex carmen extulit horridulum”.

Esta frase poderia ser traduzida como referência a uma repentina música estranha saindo do (seu) traseiro, mas o que frei Jorge queria realmente dizer era que frei William de Baskerville estava, sim, peidando pela boca!

(...)

Ocorreu em dias recentes, num certo país da América Latina e onde seu presidente insiste em dar-lhe ares antigos de mosteiro do século XIV, ao ser questionado sobre desenvolvimento com preservação ambiental, ou seja, sobre crescer preservando o meio ambiente, alegou: “É só você deixar de comer menos um pouquinho. Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida também, está certo?”.

Se frei Jorge de Burgos estivesse por aqui teria um infarto, mas certamente reuniria todas as forças para berrar: Tum podex carmen extulit horridulum!!!

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