O escafandro e a borboleta

“Como milhões de parisienses, eu realizava mecanicamente todos aqueles atos simples que hoje me parecem milagrosos: fazer a barba, me vestir, tomar um chocolate quente... Desço correndo a escada com cheiro de cera nova. Será o último cheiro de meu passado. Meus planos para a tarde: buscar meu filho na casa da mãe a 40 quilômetros de Paris e trazê-lo de volta à cidade... Vamos passar o fim de semana juntos. Depois de uma hora de trânsito, atinjo a meta: a casa onde passei dez anos de minha vida. Meu filho me espera, sentado sobre a mochila, pronto para o fim de semana. A partir deste momento, tudo fica borrado... Funciono em câmera lenta, e no facho dos faróis mal reconheço as curvas familiares. O suor surge em minha testa... Quando ultrapasso um carro, vejo-o dobrado. Paro. Saio cambaleando do carro e desmorono no banco de trás” (O escafandro e a borboleta, Jean-Dominique Bauby, editora Martins Fontes).

No dia 8 de dezembro de 1995, Jean-Dominique Bauby, editor-chefe da revista Elle, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e ficou paralisado, sem fala, capaz de mover apenas a pálpebra esquerda. Sua mente, porém, continuou ativa, e, durante o ano seguinte, conseguiu ditar um livro com sinais da pálpebra. Piscava para indicar cada letra enquanto o alfabeto era lido para ele. Morreu pouco depois do lançamento do livro.

“Minha mente voa como uma borboleta. Há tanto a fazer... Posso perambular pelo espaço ou pelo tempo, partir para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas. Posso descobrir a Atlântida ou visitar Florence, a mulher que amo.” Enquanto Jean-Dominique estava preso em seu corpo (o escafandro), sua mente (a borboleta) voava solta pelo espaço sem fim. Além da tarefa gigantesca de compor um livro com o piscar de uma pálpebra, o que mais me impressionou no livro foi o valor que ele passou a dar para as coisas mais simples. Em seu cárcere, ele não mais se preocupou com os compromissos profissionais e os horários a cumprir, pelo contrário, lembrava-se com carinho do convívio com os filhos e da última vez que esteve com o pai idoso.

“A última vez que vi meu pai foi na semana do acidente vascular cerebral. Passei a noite em seu apartamento em Paris. Pela manhã, depois de lhe servir uma xícara de chá, decidi livrá-lo da barba de poucos dias. A cena ficou gravada em minha memória: curvado na poltrona, meu pai suporta com bravura o raspar da navalha que ataca sua pele frouxa. À nossa volta, o lixo de uma vida inteira se acumula: revistas antigas, discos que ninguém mais toca, fotos presas na moldura de um espelho. Terminei o serviço de barbeiro borrifando o autor de meus dias com sua loção pós-barba preferida, e depois nos despedimos. Não nos vemos mais desde então.”

Enquanto fazia aquele gesto de carinho ao seu pai, Jean-Dominique jamais poderia imaginar que seria o último. Foi pego de surpresa, e o destino o separou definitivamente do “autor de seus dias”. Em nosso cotidiano, a maioria de nós convive com entes queridos, país, mães, filhos e, às vezes, até com primos e netos. Muitas vezes, o relacionamento não é um mar de rosas. Pelo contrário, parece mais um campo de batalha. Saímos correndo de casa, fugindo para o trabalho, única forma de livrar-nos do último bate-boca.

E se, por um leve acaso do destino, aquele fosse o nosso último encontro com um ente querido? E se não mais pudéssemos voltar para pedir desculpas ou para perdoar? Será que a possibilidade de nunca mais vermos aquela pessoa mudaria a nossa forma de pensar, falar e agir?

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