O buraco, blefes e as cartas embaralhadas

Marli Gonçalves


Sopraram uma ventania no castelo de cartas. Ele já estava
bem desarrumado, é verdade. Mas agora nos vemos
jogados em disputas que lembram bem os jogos mais
tradicionais, começando pelo buraco, passando pelo
mico, rouba-montes...
Jogadores que quando se reúnem no campo usam negras
togas, 11 ao todo nessa partida inicial. Um, de casa, se
adianta e bombardeia, surpreendendo com carta
escondida na manga. No mundo da política e da Justiça,
uma decisão judicial da mais alta corte abre uma estrada
enorme no tabuleiro e tira do xadrez, pelo menos no
tempo de muitas jogadas, uma figura proeminente do
jogo nacional do poder. Um estrondo enorme, logo
seguido de outras combinações, jogadas, trucos, pifes,
pafes, empáfias. Pronto. Agora o jogo é “pegue o
detetive” que no dia seguinte já aparece caçado por outra
proeminente decisão levada à mesa, que pretende anular
todas as suas investigações e jogadas. Um mais novinho
do grupo por ali, pula a casa, adiando o resultado. Dois se
movimentam no tabuleiro, enquanto os outros observam
os movimentos, com cartas fechadas, alguns de outras
salas, outras turmas. Segue o campeonato de braço de
ferro.

O coringa aparece e discursa. Fala sobre tudo, mais de
uma hora, e a partida transmitida ao vivo se espalha mais
do que telefone sem fio. A mensagem assusta o inimigo
encastelado, que já não anda bem, nervoso, perdido,
meio alucinado com uma equipe de aliados que sabe
pode perder rapidamente e ser bombardeado e afundado
como se estivesse em uma batalha naval, já que vários
dos seus navios, mal posicionados, já foram avistados.
Imediatamente aparece de máscara, anuncia medidas
desencontradas, e põe à sua frente um globo terrestre
bem redondinho. Quer jogar War, mas um War contra si
mesmo, tenta contrapor Estado contra Estado. Perde a
compostura, que já não era muita, ameaça, xinga,
esculhamba. Cada vez mais vira piada, jogador marcado,
birrento, pouco confiável.

O pessoal do Banco Imobiliário está atônito. O mercado
em ebulição, sobe, desce, compra, vende, aumenta os
preços. Muitas de suas peças estão imobilizadas, dado o
fechamento obrigatório que os tira do ar, limita seus
movimentos por muitas jogadas. Jogam dados para o ar,
esperam novas cartas, recuam casas, marcam e
desmarcam novas partidas.

O buraco é bem mais embaixo. O lixo se acumula sobre a
mesa, sem que ninguém consiga arrematá-lo, porque está
é muito ruim. Reúne declarações grosseiras, inimizades
históricas, impossibilidade de comprar uma nova seleção,

e a plateia que é obrigada a assistir de casa jogos tão
ruins faz barulho, começa a buscar se reunir. O jogo de
paciência, solitário, há muito acabou.
A cada momento as jogadas ficam mais tensas, duplas se
desfazem, canastras são desmontadas, as sequências tão
necessárias desfeitas, o jogo geral fechado cheio de
blefes, trucos, deslealdades, cartas escondidas, marcadas.
Ninguém bate. O buraco vira cratera.
O problema é que não há mais só um morto para pegar e
encerrar a partida, "bater". São mais de 270 mil mortos, e
aumentando a cada minuto, sem que as vacinas
apareçam para ajudar o pessoal da medicina que enxuga
gelo para tentar salvar mais vidas de todos que estão
vendendo o almoço para pagar o jantar.

Olha o mico. De verde, amarelo, azul e branco.

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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de
comunicação, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom
para mulheres. E para homens também, pela Editora
Contexto. Nas livrarias e online, pela Editora e pela
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