O ato da criação literária

Antônio de Oliveira 

Acabo de ler, de Mia Couto, em “A confissão da leoa”, a expressão “espreitando os meus caóticos papéis”. Em seguida, refere-se ao “tardio gosto de escrever”. E conclui:

“Qualquer coisa na escrita me sugere o prazer da caça: no vazio da página se ocultam infinitos sobressaltos e espantos”. 

Caóticos papéis. No princípio também era o caos. O vazio ilimitado que precede a criação do mundo. 

No princípio da página em branco, no nosso caso, o papel já existe. Mas ali não consta nenhuma escrita. Recorro ao dicionário. Ali, as palavras estão em estado de dicionário, isto é, dispõem-se os verbetes em ordem alfabética, sem nenhuma outra referência. Um caos em ordem alfabética. Onde nem as letras nem as palavras vão além do seu significado. 

E Deus disse...

Criado à sua imagem e semelhança, o ser humano, também criativo, expressa-se através da arte, no caso, arte literária, no afã de dar vida e fala a letras gagas, apenas soletráveis. Como também na composição de uma sinfonia. Com apenas sete notas... O arquiteto trabalha com curvas e retas. O pintor tem seu dicionário no universo das tintas, cores e tonalidades. 

Criar o quê?

Acho que muitas vezes nem o artista, à semelhança com uma receita de culinária, sabe ele, ela, o que vai sair. O resultado de um jogo de futebol em geral nunca é totalmente previsível.

A arte humana é fruto de criação e objeto de contemplação. Vai além do “pedra é pedra” para admitir que “sui monti di pietra può nascere un fiore...”.

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