Homenagens, ao final

Domingos Sávio Calixto

O GABINETE DO DR. CALIGARI é um clássico filme do expressionismo alemão do ano de 1920, portanto, completando seu centenário. O expressionismo caracteriza-se pelo conflito com a realidade na medida em que, como movimento de reação estética, não visa captar a realidade, e sim recriá-la a partir de uma angústia irracionalmente incontida e valorizada.

As obras expressionistas são assim mesmo angustiantes, cúbicas, cores fortes e ambientes clautrofóbicos. Claro que isso é uma decorrência do primeiro pós-guerra (1914 – 1918) e suas projeções no traumatizado coletivo psicológico da época. Artistas expressionistas podem ser citados ao estilo de Munch, (O grito) Heckel (Dois homens valentes), Kandinsky (O beijo), Modigliani (Homem com chapéu), Van Gogh (Noite estrelada), depois de sua fase impressionista, e, claro, Picasso (Guernica).

Pois bem. O filme de 1920 – responsável pelo movimento conhecido por caligarismo – traz a história sombria de um tal Dr. Caligari, o qual chega a uma pequena cidade alemã em seu jubileu e pede autorização para apresentar sua grande atração. O espetáculo trata-se de um indivíduo, em estado de sonambulismo desde o nascimento, de nome Cesare que, ainda aos 23 anos, segue dominado pela dormência  quase vegetativa em sua caixa-dormitório.

Ocorre que o show do tal Dr. Caligari é fazer despertar a gótica figura de sua (quase) coma para impressionar o público mediante a capacidade de Cesare em responder a qualquer pergunta futurística da curiosa plateia. É daí que fatidicamente um dos protagonistas se levanta e pergunta sobre seu destino e sua morte, acabando por receber a macabra resposta de que ele morreria até o amanhecer. De fato, amanhece morto.

A questão temática, portanto, incide na estranha condição de sonambulismo de Cesare e da qual se aproveita Dr. Caligari para emitir comandos a ele, induzindo-o à prática de homicídios. Sob esse aspecto, Cesare funcionaria como a longa-manus do Dr. Caligari, mas o fim do filme apresenta um desfecho inusitado e inesperado.

Pois bem, este texto não é para homenagear o centenário desta obra, muito embora ela inegavelmente o mereça. Os homenageados serão outros.

Sonambulismo, eis a questão. Uma questão que remete à metáfora expressionista da subserviência, da alienação bestializada e da violência decorrente do avesso da sublimação. O sonâmbulo do filme vestia negro, mas os sonâmbulos aqui referidos vestem a camisa da seleção brasileira – nem sempre original – cuja confederação futebolística está atolada em escândalos com a rainha midiática cor de prata, com dirigentes presos no exterior e outros daqui sequer podendo viajar, receio do mesmo risco.

Com que direito alguns sonâmbulos acham que podem vestir a tal camisa para agredir outras pessoas (São Paulo) que eventualmente vestem vermelho? Com que direito esses sonâmbulos podem fazer buzinaço em frente a hospitais (São Paulo), comprometendo a dificultosa rotina de dor daqueles que lá estão? Com que direito essas pessoas escondidas no verde e amarelo e dizendo-se evangélicas acham que podem arrancar tubos de pacientes (Manaus) com covid-19? Com que direito essas pessoas acham que podem agredir profissionais de saúde (Brasília) que pedem reconhecimento adequado do governo federal? Afinal, quem é o Dr. Caligari dessas pessoas?

Ora, o mundo todo vem enaltecendo os profissionais da área de saúde, verdadeiramente heróis modernos que estão dando suas vidas – literalmente – para salvar outras. O planeta inteiro homenageia e exalta estes profissionais – este texto é uma homenagem a eles – mas, no Brasil, eles são humilhados, destratados e espancados. É o gabinete  Caligari do ódio?

Vale a pena esclarecer aos tais “possuídos” pelo verde e amarelo que estas cores não lhes pertencem. Aliás, o verde vem da família portuguesa de dom Pedro I e o amarelo vem da família austríaca de imperatriz Leopoldina, ou seja, são as cores combinadas ao gosto do colonizador.

Entretanto, atentai: o pau-brasil é vermelho. Se forem expulsá-lo dos livros de história, talvez seja oportuno pensar em outro nome para a terra onde nasceram.

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