Estupro é morte
Domingos Sávio Calixto - CREPÚSCULO DA LEI - LXXXV
O direito não é inventado, mas descoberto. A descoberta dos direitos exige uma relação dos sujeitos históricos com as práticas de opressão que lhes afligem e vão gerar neles a consciência do direito que está sendo esbulhado. Daí – mediante esta descoberta ‒ os indivíduos (coisas ou objetos) assumem a condição de “pessoa humana”. Significa que diversos indivíduos passam por toda a vida sem chegarem à condição de pessoa humana ao longo de sua (in)existência.
A pessoa humana é, portanto, o indivíduo com noções de existência e gozo de dignidade, atributo este que lhe confere condições para impor limites às formas de poder que lhe governa e, desta forma, chegar à condição maior de “cidadão”. Assim, tal qual indivíduos morrem sem chegarem à condição de “pessoa”, também ocorre que diversas pessoas morrem sem chegarem à condição de “cidadão”.
Assim, a dignidade humana é atributo fundamental da pessoa e é através dela que a pessoa tem sua “vida digna”. Não existe pessoa sem vida digna, apenas indivíduos.
Na mesma linha de raciocínio, o fundamento da dignidade humana é a “dignidade sexual”, constada na liberdade do corpo e do espírito para o prazer e o gozo da vida. Dignidade sexual é a descoberta do direito de gozar a vida na plenitude erótica em louvor à própria vida, desprezando-se todos os deuses da morte.
É nesse sentido que o estupro age em favor dos deuses da morte e contra o louvor à vida. O estupro é exatamente o avesso do gozo para a vida, ou seja, é o gozo pela morte naquele nascedouro básico da pessoa humana que é a dignidade sexual, vale dizer, um “dignicídio”.
O estupro é um dignicídio contra a vida digna, cuja prática tenta o extermínio da pessoa para sua redução a mero objeto ou coisa (indivíduo), nos moldes mesmo de espólio de guerra.
Sob esse aspecto o estupro pode ser debatido sem que o dignicida tenha fins libidinosos, ou seja, a intenção do prazer sexual. Isto pode ocorrer complementarmente ‒ já que a intenção primeira é arrancar da vítima sua dignidade original, que é a dignidade sexual, e, consequentemente, destituindo-lhe ou impossibilitando-a à condição de “pessoa”.
Ao longo da história populações inteiras foram governadas mediante estupros coletivos e sociais, mediante práticas que lhes impossibilitaram o acesso à dignidade sexual, fato que se consumou por séculos, mediante a ignorância dos sujeitos históricos em relação às práticas de opressão que lhes afetaram e afetam ainda hoje.
Sem embargo e com os devidos empréstimos de Shakespeare, há mais brasileiras e brasileiros sendo sistematicamente estuprados do que imagina nossa vã filosofia, e sem qualquer sombra ou sonho de vida digna.