Dois pontos escuros sobre a onda vermelha

Marcio Almeida Jr.

O novo analista do Agora discute dois aspectos centrais — mas não suficientemente mencionados até aqui nos debates públicos — sobre o combate à covid-19 em Divinópolis a partir da flexibilização da onda vermelha feita pelo programa Minas Consciente

As mudanças anunciadas pelo governo estadual para o programa Minas Consciente merecem uma análise mais cuidadosa do que têm tido desde que foram definidas no fim de janeiro. Trata-se, antes de tudo, de evitar que fiquem subentendidas algumas questões que, justamente por não serem explicitadas, podem induzir a erro quem reflete sobre o programa e o combate à pandemia em Minas. Dois pontos, em especial, precisam ser trazidos à luz. 

Em primeiro lugar, é necessário explicitar que a possibilidade de funcionamento de todas as atividades na onda vermelha, que até então só permitia as essenciais, não se baseia na evolução do quadro da covid-19 em Minas. É de natureza econômica, e não sanitária, a lógica que está na base dessa mudança. Ela atende a uma necessidade — tão real quanto compreensível — dos empreendedores mineiros de setores não essenciais, cujos negócios permaneceram por longo tempo de portas fechadas e, por conseguinte, amargaram sérios prejuízos. Não custa lembrar, a propósito, que o Minas Consciente não é, em sua essência, um programa sanitário para combate à covid-19, e sim um plano para “garantir a retomada segura da economia no estado durante a pandemia”, conforme o define o próprio governo mineiro em sua página oficial. 

A prova irrefutável de que a lógica de mudança da onda vermelha não é sanitária está nos dados epidemiológicos tornados públicos pelo próprio Executivo estadual. Eles indicam uma situação agravada. No mesmo dia 26 de janeiro em que se anunciaram as modificações no programa, Minas registrou 216 mortes por Covid-19, número recorde desde que a doença começou a se espalhar pelo território mineiro. Só em janeiro, como amplamente divulgado pela mídia de Belo Horizonte, ocorreram 26% de todos os casos da doença registrados no estado durante toda a pandemia. A situação não é menos pior em Divinópolis, que teve em janeiro número recorde de óbitos, segundo os boletins epidemiológicos oficiais. O de 4 de janeiro registrou 102 mortes ocorridas desde março de 2020, enquanto o do último dia 1º de fevereiro registra 141 mortes. Não se pode excluir a possibilidade de que esse número impactante — 39 óbitos em menos de 30 dias — não abrange todas as pessoas que efetivamente morreram de covid-19 na cidade, pois aqui, como no resto do Brasil, há subnotificação e casos em estudo. Também é significativo o aumento dos casos confirmados da doença na comparação entre as duas medições. A de 4 de janeiro mostrava 4.020 casos no município, número que subiu a 5.637 na de 1º de fevereiro, com um aumento de 1.617 casos, equivalentes a 28%. Logo, se há lógica na abertura de serviços não essenciais determinada pelo Minas Consciente, ela não é, definitivamente, sanitária. O que não significa, naturalmente, que tal abertura seja impossível, pois há outros cuidados que podem ser tomados na perspectiva de combater a doença, o que leva, aliás, ao outro ponto a ser explicitado.  

Deve ficar explícita, em segundo lugar, a maneira como se devem operacionalizar os cuidados que a nova fase do Minas Consciente sugeriu aos municípios em contrapartida à flexibilização da onda vermelha. Em uma situação de funcionamento amplo do comércio, tais sugestões, incluindo a exigência de maior distanciamento entre pessoas no interior dos estabelecimentos, são a grande aposta da nova fase do programa para combater o coronavírus. Não há por que duvidar de que podem ser eficazes. Sendo bem implementadas e não havendo uma piora considerável do quadro epidemiológico que leve à necessidade de medidas mais radicais de isolamento, essas sugestões podem conseguir frear o vírus mesmo com o funcionamento de todos os setores comerciais. Mas é preciso dizer – e isso não foi explicitado em nenhuma das informações oficiais – que não cabe ao governo estadual e sim aos municípios a implementação de tais sugestões. Na prática, portanto, o que o Minas Consciente fez, ao trocar portas fechadas por abertura controlada, foi delegar à esfera municipal o ponto central para o qual converge toda a política pública de prevenção à covid-19 a partir de agora. 

A grande questão que se coloca é saber se, no caso de Divinópolis, há a devida preparação para que se efetive essa troca. Uma resposta honesta, constatável por qualquer cidadão ou cidadã, precisa dizer honestamente que não há ainda todo o preparo necessário. Para que ele exista, são necessárias, como se percebe pelas boas experiências mundiais amplamente divulgadas pela mídia, duas providências fundamentais. A primeira é de natureza educativa e inclui um trabalho – bem maior e mais rápido do que o que está sendo feito até agora na cidade – para tornar a prevenção uma regra, instalando uma cultura de cuidado. Sugestão: que tal levar o modelo de prevenção que a Prefeitura definiu no fim do ano passado para as escolas, com as devidas adaptações, para o restante dos estabelecimentos da cidade? Seria um grande passo, na medida em que as escolas, como se sabe, são de longe o setor mais regulado em termos de cuidados preventivos, constituindo, por isso mesmo, um paradigma que pode ser seguido. A segunda providência, obviamente, é a imprescindível fiscalização sanitária, que precisa urgentemente ser ampliada de modo significativo em Divinópolis com a criação, pela Prefeitura, de uma verdadeira força-tarefa que não só atenda a denúncias eventualmente, como também circule de modo itinerante pelas ruas. Não há alternativa para a cultura de prevenção e o rigor de fiscalização. Ou melhor: até existe essa alternativa. Ela pode ser vista em Manaus.   

Márcio Almeida Jr. é professor e jornalista, com duas décadas de experiência em emissoras e mídias impressas e eletrônicas, onde se especializou na cobertura de políticas públicas. Há 20 anos ensina argumentação avançada, linguagem criativa e pensamento crítico em cursos ministrados em Divinópolis, Belo Horizonte e outras  cidades.

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