Depois de muitos anos

Leila Rodrigues

 

E de repente, sem nenhum sinal aparente, algumas coisas perderam o sentido. Não houve um aviso sequer, nem do vento, nem da chuva, nem dos deuses. Também não se pode dizer que ela acordou mudada ou que ele amanheceu assim e foi dormir assado. Eles mudaram. É fato! E só se deram conta depois de mudados. Tudo aconteceu tão serenamente que ninguém notou. Ou se notou, ficou calado, observando a felicidade que pairava nos atos.

Ela agora gosta de ficar na janela, observando o horizonte. Ele passou a gostar do cachorro que agora chama de amigo. Ela parou de ver novelas, ele tem gostado de poemas e emprestou a ela um livro do Drummond. Ela experimentou a yoga, ele o pilates e juntos eles descobriram o prazer de uma taça de vinho antes do jantar.

Ela não pinta mais os cabelos, ele deixou a barba crescer, tá usando. Ela descobriu que vestidos são femininos e confortáveis, ele voltou a usar o chinelo de couro. E juntos eles planejam a próxima viagem.

Tem dias que ela acorda muito cedo, tem dias que ele faz o café. E quando chove eles ainda discutem sobre quem vai buscar o pão. Eles continuam gostando de rock, mas ela não perde a chance de ouvir um Belchior e cantar junto. E ele jura que ouve Anitta por causa da voz.

De manhã ele gosta de silêncio, à tarde eles sempre tomam um chá. De vez em quando eles saem para dançar. E volta e meia enchem a mesa de amigos.

As plantas estão mais bem cuidadas e o controle da TV sumiu tem 5 dias. Ela adotou um gato e eles já não pensam mais em voltar para São Joaquim.

Será que foi a calmaria que chegou sem avisar? Será que foi o tempo que colocou cada sentimento no seu devido lugar? Nenhum dos dois nunca parou para perguntar e nem para responder. Perguntas e respostas também perderam um pouco o sentido. Certamente foi o cansaço que deixou a simplicidade entrar pelas frestas das poucas horas de lucidez. Cansados de correr atrás das coisas decidiram andar lado a lado. E o tempo que corria atrás do tempo, pedindo mais tempo para dar conta de tudo cedeu seu lugar ao tempo de deixar a vida acontecer.

Há quem fale que isso não é amor. Eles, pelo visto, nada tem a dizer. Eu só posso dizer que admiro aqueles dois e que foi assim, nas quase imperceptíveis mudanças de cada um, que aquela casa no fim da rua Delfinópolis, com paredes carmim e flores na varanda, experimentou de verdade a simplicidade de ser feliz!

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