Crepúsculo da lei - XXXII: A ti entrego meu cadáver

Domingos Sávio Calixto

Muitas questões podem ser levantadas na busca pela compreensão de uma autonomia da vontade para a disposição do próprio corpo, com ou sem vida, em sociedade.

Pois bem, ocorreu em 2001. Armin Meiwes (1961, técnico em informática), morador da cidade alemã de Rotemburgo, postou anúncio em um site da internet “procurando uma pessoa forte de 18 a 30 anos de idade para ser abatida e depois consumida”.

O anúncio foi pontualmente respondido por mais de duzentas pessoas, sendo exato que quatro delas marcaram entrevista com anunciante e, ao fim, Bernd Brandes (1958, engenheiro de software) aceitou e se apresentou para os termos do anúncio, muito embora sua idade tenha ultrapassado os termos anunciados (43 anos).

Na data combinada, 9 de março de 2001, os contratantes se encontraram no sítio de Meiwes, conversaram alegremente, beberam, se relacionaram e o homicídio foi devidamente realizado nos exatos termos consentidos pela vítima, incluso toda a ritualística que foi minuciosamente filmada.

O cadáver do contratado foi partido em pedaços executivos, acomodados em sacos plásticos e devidamente acondicionados em um freezer. Cada pedaço era cuidadosamente preparado pelo autor numa receita de filé que envolvia azeite, alho e noz-moscada.

Meiwes só foi preso em 2002, depois de uma denúncia, quando já havia ingerido aproximadamente 20 quilos de sua ofertada vítima. Ele ficou conhecido como o “canibal de Rotemburgo”.

Durante o julgamento, alegou que rezou pela vítima e teve um prazer indefinível na primeira mordida, e que havia sonhado com aquele momento durante trinta anos. Foi condenado à prisão perpétua. Em 2007, declarou-se vegetariano.

Na lei penal brasileira são dois crimes: homicídio e destruição de cadáver.

Muito embora o evento trate do “canibal de Rotemburgo”, tecnicamente trata-se de antropofagia, a qual consiste na ação de comer carne humana. Por outro lado, canibalismo consiste em comer carnes da própria espécie. Portanto, os animais que não se comem uns aos outros não são canibais, muito embora possam ser antropófagos quando atacam e devoram um ser humano.

Sobre o presente caso antropofágico, a distinção entre autor e vítima ficou por conta da lei em vigor, já que entre os envolvidos tudo restou pactuado, todas as questões morais estavam plenamente ajustadas entre eles, ou seja, entre os envolvidos todo o corrido foi o devido cumprimento de um acordo – agreement – de cavalheiros.

Outros pactos sociais também estão repletos de situações em que a separação entre autores e vítimas se dá apenas pelo resultado ocorrido. A escolha do resultado como paradigma de valoração existencial de algum delito parece ser a mais prática, muito embora esteja longe de dimensionar toda a complexidade que une os envolvidos, ainda que de maneira conivente ou silenciosa nos relacionamentos.

De alguma forma a escolha de governantes também pode ser considerada um ajuste de vida e morte. Há situações claras em que a opção por determinados representantes poderá causar sérios danos sociais, inclusive a morte, mas mesmo assim as vítimas se apresentam festivamente para serem socialmente imoladas. Evidentemente que sem azeite, alho ou noz-moscada.

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