CREPÚSCULO DA LEI – XXXIV

Pessoas não humanas

Baleias e golfinhos possuem capacidade dialogal, transmitem técnicas aprendidas do grupo às novas gerações e têm dificuldades de superação da morte, dentre outras descobertas da ciência. Até por conta destes estudos e conclusões, a Índia passou a considerar oficialmente golfinhos como “pessoas não humanas”.

Sobre esse aspecto, nada a estranhar. O léxico “pessoa” é uma invenção do animal humano em linhas de homenagens a si mesmo, numa grande festa do antropocentrismo. Ocorre que há uma forte tendência ecofilosófica para considerar outras espécies como sendo pessoas não humanas, tendo em vista o chamado “senciocentrismo”.

Este aborda a questão dos seres sencientes como sendo aqueles dotados de capacidade de sentimento e consciência na relação com o ambiente, de tal sorte que podem sentir dor e prazer. Na medida em que podem sentir dor e prazer, podem sofrer e podem ser alvos de crueldade.

O pensamento senciocentrista substitui o antropocentrismo e amplia o entendimento de pessoa para nele inserir as pessoas não humanas. Isso envolve uma reflexão extensiva que chega ao biocentrismo jurídico e a um ecossistema biocêntrico de direito, construído sobre a regra primordial da não causação de sofrimento às pessoas humanas e não humanas.

Essa corrente ecojurídica interfere no conceito de democracia por conta de uma nova concepção de povo, alastrada às pessoas não humanas. Da mesma forma, interfere no conceito de dignidade da pessoa humana, a qual se estenderá às pessoas não humanas.

Sem embargo, também haverá que se revisitar o conceito de moral, de ética e de política. Além disso, o princípio da igualdade terá uma amplitude maior. O próprio direito deverá abrir-se à proteção destas novas pessoas como sujeitos passivos de crimes.

Talvez a maior contrafação semântica recaia mesmo sobre o significado de justiça, naquilo que ela deverá apresentar como novo propósito dimensional de pretensão. Qual a pretensão da justiça com base nesse utilitarismo consequencialista de proibição da crueldade às pessoas não humanas?

Ora, se a justiça, no biocentrismo democrático de pessoas humanas e não humanas, envolve o abolicionismo animal e a proibição da crueldade, parece que a referência da justiça neste novo regime talvez até coloque fim à determinados sistemas penitenciários, inclusive libere alguns presos pessoas humanas que estavam sendo tratados como... como o quê?

Trata-se de um paradoxo capaz de fazer Sartre (1905 - 1980) revirar em seu túmulo francês. Os argumentos correspondem ao inverso do pensamento existencialista sartreano, de tal sorte que a essência é que vai preceder a existência, sim, já que não há nenhuma essência capaz de diferenciar a pessoa humana da não humana, nem moral, conforme já antecipava Schopenhauer (1788 - 1860).

Ocorre que a forte oposição à justiça biocêntrica se dará pelas próprias pessoas humanas. Elas são especialistas em crueldade e não possuem muita disposição de perda deste atributo. Elas, as pessoas humanas, são tão hábeis em crueldade que são capazes de diferenciar pessoas humanas e não humanas a partir de sua própria espécie.

A prova maior dessa inventividade voltada para os extremos da crueldade é a criação do Estado. A pessoa humana criou o Estado exatamente para diferenciar pessoas e, partindo desta seletividade, atingir o nível de crueldade mais sofisticado possível. O Estado é uma invenção de fazer sofrer e é tão cruel que foi capaz de superar até mesmo a religião em suas relíquias dos flagelos.

De qualquer forma, o biocentrismo está em debate e estruturado na crueldade como elemento simbólico. Há quem o tome como mensagem do demônio, mas há aqueles que o defendem e dividem generosamente o espaço da humanidade com outros. Estes, sim, são verdadeiras pessoas humanas.

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