Corações solitários

Augusto Fidelis

Domingo, na parte da tarde, resolvi rasgar um pouco de papel daquele monte que ajuntei sem nenhuma necessidade. Mas, quando a gente resolve fazer estas coisas, é preciso prestar muita atenção, pois corre-se o risco de dar fim a certas preciosidades. Por pouco não mandei para o lixo o delicioso conto de Rubem Fonseca, que tem como título “Corações solitários”.

A obra conta a história de um repórter policial, que andava desiludido com sua área de atuação, visto que não acontecia na cidade nada de interessante, como um crime envolvendo uma mulher jovem, bonita e rica, pertencente à alta sociedade. Os seus editores diziam ser somente questão de tempo, pois estava tudo podre. A qualquer hora surgiria um escândalo que daria matéria por um ano. Porém, mandaram-no embora antes dessa iminente tragédia.

O repórter buscou emprego no Jornal Mulher, sendo recomendado pelo primo, Machado Figueiredo, funcionário do Banco do Brasil, onde o editor-chefe, Oswaldo Peçanha, devia dinheiro. Mulher tinha o formato tablóide, com manchetes em azul, algumas fotos fora de foco, fotonovelas, horóscopo, entrevista com artistas e corte e costura, feito para mulheres de classe C. No entanto, um pesquisador tentou mostrar a Peçanha que seu público eram homens da classe B, deixando o editor-chefe possesso.

No jornal todos usavam pseudônimo feminino, inclusive Peçanha, que adotou o nome de Maria de Lourdes. Mas, devido à influência do primo, o repórter pôde adotar  pseudônimo masculino, Dr. Nathanael Lessa, na sessão Correio Sentimental. Mas, quando Peçanha o solicitou para escrever a fotonovela, no lugar de Norma Virgínia, adotou o pseudônimo de Clarisse Simone.

O repórter descreve os principais personagens da seguinte forma: Oswaldo Peçanha ou Maria de Lourdes, genioso, fumador de charutos, dentes sujos de nicotina, há vinte e cinco anos no negócio; João Albergaria Dival ou Sandra Marina, rapaz pálido, de longos bigodes, que vivia reclamando de não ter feito odontologia em vez de comunicação, adotava também o pseudônimo Marlene Kátia, na seção de entrevistas; Jacqueline, recepcionista, crioulo grande de dentes muito brancos; Agnaldo ou Mônica Tutsi, fotógrafo, cuja gargalhada tinha o som de cachorro grande e rouco, domesticado, latindo para o dono; Dr. Pantercovo, pesquisador motivacional, imperturbável, parecido feito de gelo.

Dr. Nathanael Lessa, simultaneamente Clarice Simone, passava o tempo escrevendo cartas das leitoras e dando as respostas e as fotonovelas. Um dia apareceu uma carta verdadeira, a de Pedro Redgrave, pedindo conselhos. No fim da história, o repórter descobriu que Pedro Redgrave era o próprio editor-chefe, Oswaldo Peçanha. Este lhe pediu segredo e, com um longo suspiro, acrescentou: “A minha vida daria um romance”.

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