Considerações para um direito penal celeste

Domingos Sávio Calixto

As considerações que se seguem são reflexões em face da obra “Código Penal Celeste”,  2004,  do rabino Nilton Bonder.

O marco estrutural da escrita em questão envolve um questionamento sobre a justiça terrena, em face de sua constante preferência em julgar o indivíduo, e não suas ações ou desvios. Claro que isto conduz facilmente a uma transmutação de paradigma do “bem ou mal” para o “bom ou mau”, consistindo seguramente na fonte de todo o preconceito.

Por outro lado, a justiça celeste vai desconhecer tais conceitos “mundanos”, de cunho notadamente parcial, na medida em que é, evidentemente, absoluta (!). Isto implica em desconsiderar a lógica da punição deduzida no confronto entre autor e vítima. Tais figuras inexistem na justiça absoluta exatamente por reproduzirem um modelo de parcialidade.

Neste contexto as figuras de “autor e vítima” se fundem numa única pessoa, a qual será sua própria arena de julgamento. Trata-se de uma experiência diante do absoluto e somente compreendida exatamente por ser parte dele, tanto mais pela impossibilidade de alguma parcialidade. Não existe parcialidade diante do absoluto.

Esse “autor-vítima” que se apresenta para si mesmo será, portanto, fragmento do absoluto por sua condição de nudez e vulnerabilidade. Nudez naquilo que envolve ter tão somente sua única vida a ser vivida, e vulnerabilidade por submeter-se em constante carência espiritual. Portanto, as ofensas as estas condições de nudez e vulnerabilidade consistiriam nos elementos de análise da culpabilidade e crimes celestiais.

Os crimes celestiais teriam como referência os 10 mandamentos – decálogo mosaico – e seriam ajustados à maneira de serem aplicados ao individuo em relação a ele mesmo. 

Assim adaptados, o Mandamento, de “Não adorar outros deuses”, seria reescrito como “Todo indivíduo deve sacralizar-se em sua própria vida”. O . Mandamento, de “Não fazer imagem de coisa alguma que haja no céu”, seria convertido em “Todo poder do indivíduo emana de sua própria realidade, não de suas ilusões”. O Mandamento, de “Não usar o nome divino em vão”, seria convertido em “A integridade só pode ser vivida na fragmentariedade”. O Mandamento, de “Guardar o sábado como dia santo”, teria o correspondente “Guarda a pausa na dinâmica, e o vazio ante o pleno”. O Mandamento, de “Respeitar pai e mãe”, teria o correspondente “Honra tuas fontes de orientação e sentido”. A ofensa a estes mandamentos seriam crimes celestiais contra a vulnerabilidade da própria pessoa.

O Mandamento, de “Não matar”, seria “Não rejeite a integridade pela fragmentariedade”. O Mandamento, de “Não cometer adultério”, corresponderia a “Não percas a pureza do teu foco”. O Mandamento, de “Não roubar”, corresponderia a “Não se renuncie em teus limites”. O Mandamento, de “Não dar falso testemunho”, seria correspondente a “Não forme jurisprudência contra si”. Finalmente, o 10º Mandamento, de “Não cobiçar os bens de outro homem”, seria equivalente a “Não abdique do querer único do momento”.  A ofensa a estes mandamentos seriam crimes celestiais contra a nudez da própria pessoa.

As penas seriam aplicadas em vida, e perseguiriam o indivíduo como pragas: pragas de solidão (do 1º ao 5º) contra a vulnerabilidade, e de desespero (do 6º ao 10º) contra a nudez.

Assim, a grande dificuldade do julgamento celestial consiste exatamente no fato de o indivíduo ser julgado por ele mesmo, devendo o “ele tomar-se de eu” para responder ao seguinte quesito, sem recurso de arrependimentos de última hora: você foi eu mesmo?

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