As dores da libertação

Raimundo Bechelaine

Nesta semana, algumas paróquias revivem uma antiga prática devocional conhecida como "setenário das dores". É uma recapitulação de sete principais momentos de angústia e sofrimento vividos pela mãe de Jesus, conforme o relato dos Evangelhos. Porém, no fim de semana, teremos um domingo sem ramos. Ou seja, o coronavírus nos impõe um segundo ano sem as tradicionais e teatrais procissões da Semana Santa. Mais uma vez, teremos que nos contentar com algumas solenidades a distância, on-line ou pela televisão.

O conjunto de celebrações da Páscoa cristã, popularmente chamado de Semana Santa, constitui o ponto central do ano litúrgico católico. Começa com a festividade de ramos, lembrando a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, e prossegue até o domingo da ressurreição. É quando os crentes revivem os mistérios culminantes da sua libertação pelos méritos de Cristo, o novo Moisés.

A propósito, vale tomar para reflexão alguns trechos de um texto famoso do cardeal Joseph Ratzinger, datado de 6 de agosto de 1984. Na célebre "Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação", escreveu ele: "O Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação. (...) A libertação é, antes de tudo e principalmente, libertação da escravidão radical do pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça. Ela exige, por consequência lógica, a libertação de muitas outras escravidões, de ordem cultural, econômica, social e política, que, em última análise, derivam todas do pecado e constituem obstáculos que impedem os homens de viverem segundo a própria dignidade. (...) Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos. (...) A aspiração pela libertação, como o próprio termo indica, refere-se a um termo fundamental do Antigo e do Novo Testamento. (...) Cristo, nosso Libertador, libertou-nos da escravidão do pecado e da escravidão da lei e da carne...". 

Excelente teólogo, o cardeal sucedeu João Paulo II, sob o nome de Bento XVI. Também a meditação das dores de Maria pode ser vista a partir do citado texto de Ratzinger. No parágrafo IV n. 5, sobre os "fundamentos bíblicos", lê-se: "As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações  de graça referem-se à salvação religiosa e à libertação". Não há dúvida de que a Mãe daquele a quem Ratzinger chama de "nosso Libertador" enquadra-se na afirmativa acima. Também ela sofreu perseguições e compôs um belo canto de ação de graças e libertação. Pela extrema fidelidade ao Deus da Aliança, sofreu múltiplas provações, dores e conflitos. Bem pode, portanto, ser invocada como Senhora da Libertação. 

Neste grave momento de aflição, recorramos à intercessão daquela que intercedeu em Caná. Trezentas mil vidas brasileiras se foram. Outras milhares vão perder-se. O pranto, a dor, a mágoa e a revolta atormentam milhões de famílias e corações dilacerados. Vivenciamos uma situação de omissão criminosa, de injustiça, de gritante desigualdade social, de abandono e desespero, de lágrimas e morte. Que a fé no Cristo Libertador e a veneração de sua Mãe nos mostrem caminhos e nos inspirem ações corajosas e efetivas. Nossa Senhora da Libertação, rogai por nós.   

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