A pomba e a engrenagem

Na primeira de uma série de crônicas jornalísticas que retratam o cotidiano de Divinópolis, o colunista reflete sobre a alma da cidade que há 10 anos escolheu como lar

Márcio Almeida Jr.

Uma tarde em fins de maio. No curto trajeto até o trabalho que faço a pé pela Avenida 21 de Abril, eis que a pergunta volta ao meu pensamento. Se a memória não me engana, ela surgiu cerca de 5 anos depois de Divinópolis se transformar oficialmente em meu novo lar. Se pudesse falar, o racionalista que habita o hemisfério esquerdo do meu cérebro diria que essa indagação não passa de uma fantasia emotiva. Na melhor das hipóteses, seria uma compreensível manifestação de quem, tendo perdido a mãe e o irmão em outra cidade, veio buscar aqui novos ares.

Mas o racionalista que vive em mim não está autorizado a falar de emoções. Assim, livre da ideia de fazer sentido para as “pessoas práticas”, seja lá o que se entenda por essa expressão, a minha pergunta de estimação continua a voar livre no céu das horas vagas, indo do letreiro no telhado do Santuário de Santo Antônio às oficinas ferroviárias do bairro Esplanada. E insiste: onde estará a alma desta cidade cujo nome entrelaça a “polis” das aulas de história sobre os gregos antigos ao “divino” que a fé portuguesa introduziu no país?

Com a mesma elegância das saias e vestidos que em horário comercial percorrem as lojas de pronta-entrega no centro ou na vizinhança do terminal rodoviário, várias candidatas se apresentam ao meu pensamento na tentativa de pôr fim à questão. Primeiro vem a ideia da “cidade-empreendedora” criando fábricas e lojas na mesma velocidade em que produz escolas e cursos. Penso então: como negar o charme sedutor dessa ideia, que se harmoniza com a paisagem repleta de fundições, construtoras e escritórios de profissionais liberais?

Filhos legítimos da vida urbana, comércio, serviço e indústria não explicam, contudo, toda a personalidade desta jovem habitante do Oeste de Minas. Afinal, seu povo transborda de reverência pela tradição rural, que ressurge a cada mês de junho na festa repleta de cavalos, camisas de tecido xadrez, chapéus, botas e modas de viola. E não posso deixar de registrar, naturalmente, que, antes e depois do grande evento junino, muitos aguardam com ansiedade os fins de semana para trocar o pavimento asfáltico pelas estradas de terra de sítios e chácaras.

Uma segunda ideia, a da “cidade-tecnológica”, tenta explicar à minha curiosidade a essência divinopolitana. De novo, porém, o resultado me desconcerta. De fato, como negar que a cidade abriga tanto os engenheiros e especialistas em informática quanto os poetas, romancistas, atores, pintores, escultores, músicos, dançarinos e tantos outros artistas? E quem haverá de negar que junto aos convertidos da tecnologia seguem todo ano, em solene procissão pela Avenida Primeiro de Junho, os devotos da Padroeira do Brasil?

Outra tarde em fins de maio. Em mais um rápido trajeto pela 21 de Abril, na altura da praça recém-liberada das grades que a pandemia tornou necessárias, recordo, sem saber exatamente por que razão, a fotografia feita por meu filho Pedro e publicada um ano antes em suas redes sociais. Em um daqueles vislumbres que a paisagem reserva a fotógrafos atentos, a imagem mostra a sombra da velha torre do Santuário projetada na ampla parede lateral do edifício que a moderna arquitetura divinopolitana fez surgir no quarteirão fechado da Rua São Paulo.

Puxada pela foto, a pergunta me volta à mente, já desenganada de encontrar facilmente a chave da escorregadia alma divinopolitana. Entretanto, minhas pernas, obedecendo a um comando que a consciência não se lembra de ter dado, me fazem parar entre as lojas de açaí e as boutiques cujas portas exalam cheiro de incenso e roupa nova. Parado na calçada, enquanto os sinos da torre informam que são 18 horas, entre um frei que passeia vestido a caráter e funcionários que saem do trabalho em busca de sanduíches e garrafas de Pon chic, tenho enfim um vislumbre.

Por obra e graça, talvez, desta paisagem mineira que, se não tem um monte de montes, como canta Gê Lara, tem por certo um tanto de trens, chego à resposta: entre a siderúrgica e o curral, entre a informática e a procissão, entre o rodeio e o balé, respira Divinópolis, ao mesmo tempo provinciana e cosmopolita, clássica e romântica. É aí, na roda-viva que fascinou o escultor GTO, que encontro a alma da “cidade-oficina”, que ama a síntese ao ponto de unir em sua bandeira a racionalidade da engenharia e a mística do Divino Espírito Santo.

Silenciam os sinos. Com o início da noite já oficialmente decretado pela igreja dos franciscanos, retomo o meu passo. Lembro então que neste fim de maio faz 10 anos que percorro estas ruas e penso no quanto fui abençoado com novos amigos e amigas, muitos deles vindos de outros ares. Aqui estamos todos, Divinópolis, com faca e queijo, mas, sobretudo, com fome de viver no teu coração liricamente hexagonal, este coração que transforma usina em teatro e acolhe forasteiros como eu com a firmeza das engrenagens de aço e a gentil suavidade das pombas.

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