A política do home sacer

CREPÚSCULO DA LEI – ANO III – CXXXVIII

A política do home sacer

HOMO SACER é uma expressão do direito romano arcaico que designa um homem “entregue” ao juízo dos deuses, à mercê dos deuses. Igualmente pode ser entendido no senso comum pela expressão “ao deus-dará”. Trata-se de uma figura abordada por diversos filósofos, mas o italiano Giorgio Agamben talvez seja quem mais se lhe dedicou estudos, conforme livro com o mesmo título. Provavelmente sua origem tenha ressonância no episódio do fratricídio perpetrado contra Abel, quando recebeu seu estigma conjuntamente com a determinação divina de que NÃO fosse Caim morto por outrem.

Assim, ser sentenciado como homo sacer não era, definitivamente, uma situação das mais fáceis. O tal “consagrado” deveria viver o resto de seus dias com justificado temor de ser morto por alguém com pouco entendimento da reserva divina. Por causa disso, quase sempre se abrigava nas florestas, tal qual bicho – surgindo daí as histórias dos homens lobos. Muitos eram torturados quando encontrados, amarrados e jogados aos animais, ou mesmo para dentro dos rios ou mares. Vida desgraçada era essa a do “homem consagrado”.

Na realidade o homo sacer tinha sua dignidade humana subtraída, cabendo apenas aos deuses restituí-la. Eram mesmo vidas indignas de serem vividas, assim como consideravam os indesejáveis e os inimigos. Ora, se a vida era indigna de ser vivida, o que restava era dar a ela uma “solução final”, mesmo que isso pudesse servir para dar uma estética utilitarista, por exemplo,  aos campos de concentração.

O caso brasileiro demonstra – no sentido do (de)monstro exposto – um contingente populacional já condenado à condição de homo sacer, isso sem se falar das favelas, ou presídios, ou mesmo do meio milhão de condenados pelo negacionismo da ciência a das vacinas em plena pandemia. O caso brasileiro do homo sacer não está ligado nem diretamente à escassez de cidadania, mas, sim, às condições de CONSUMIDOR. Significa que, no Brasil, quem não é consumidor e tem apenas boca para comer e nada mais está condenado a vagar no vale da sombra e da morte, temendo tudo e a todos na condição de homo sacer.

Assim condenado – por não ser consumidor – o homo sacer brasileiro pode ser despejado, espoliado, atropelado, adoentado, perseguido, agredido, preso, torturado, desparecido ou... morto!

A atual política econômica do governo vem dando seguidas condenações “sagradas” aos perambulantes desgraçados, aqueles sem condições de pagar pela infeliz existência junto aos gananciosos deuses do capital. 

O ministro da economia – do time dos “Chicago Boys” com passaporte pelo Chile de Pinochet – já deu diversas demonstrações de como deve ser tratado o “homo sacer” brasileiro: 1. disse que a festa das “empregadas domésticas na Disney” tinha que acabar; 2. disse que faculdade não é lugar de “filho de porteiro”; 3. disse que velho “não tem que viver muito”, pois prejudica a previdência; 4. disse que pessoas em situação desfavorável deveriam ser agraciadas com “resto de comida de restaurante”; 5. não disse nada, claro, sobre “acabar” com os privilégios da burguesia brasileira, como altos salários de congressistas, reformas previdenciária e administrativa atingindo juízes, promotores e militares, e nem disse nada sobre taxação de grandes fortunas.

Esse é o quadro geral de uma política de produção de homo sacer no Brasil, e é por isso que Chico e Milton já pediam: “Pai, afasta de mim este cálice!”.

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