A peste

Domingos Sávio Calixto

É claro que o título é para fazer referência ao magnun opus do escritor, premiado com o Nobel, Albert Camus (1913 – 1960).

O livro clássico publicado em 1947 e com clara influência de Sartre, Nietzsche e Kafka. Evidentemente que o clima da escrita reflete especialmente o segundo pós-guerra, bem como toda a sensação pestilenta e trágica que o conflito mundial deixou, mas nem por isso perde sua extensão metafórica aos dias atuais. Por isso mesmo é um clássico.

A obra, em romance, tem a narrativa de fatos ocorridos numa pequena cidade da costa da Argélia (na Argélia nasceu Santo Agostinho) chamada Orã. É onde a peste chega mediante ratos, os quais a transmitem à população, dizimando-a significativamente (e só essa abordagem já garante a metáfora).

A narrativa é estabelecida por um médico chamado Rieux , o qual traz para si a semiologia da resistência em face de ignorantes, aproveitadores, apáticos, histéricos e xenófobos, tudo acontecendo em atualidades divulgadas pela rádio local.

Na medida em que se vai lendo cada página, os acontecimentos causam torpor. Tem-se a impressão que já existia naquela comunidade uma outra peste fundada na abstração e no inominado, no compromisso de não-vida, ou vida que se renova com a morte alheia. É uma odisseia ao cadáver coletivo cheio de unguentos, como também uma oferta à ratanização (sic) da vida, ou seja, ratos em restos-de-nós morrendo silenciosamente e, quando se percebe, trouxeram o maleficarum.

Ocorre por estas bandas-brasilitantas que há grandes dificuldades em se perceber os ratos se aproximando. A situação se agrava com as limitações do espírito científico que possibilitariam a identificação deles em tempo oportuno. Entretanto, eles ocupam o poder facilmente e o único diagnóstico possível já carrega o limiar do absurdo intratável.

A questão no livro ainda (ex)tende pelo desamor e no amor que força corpos a viverem sem se conhecerem, porquanto a peste demarca a dor na temporalidade conjuntamente perdida, instalada no espaço do corpos comprometidos tão somente em não ex-istir.

Há pessoas ao redor que não se fazem por não saberem-se em hábitos-de-si, e fazem da ignorância um clamor pela única peste que julgam capaz de curá-las, olhos para cima e espírito para  baixo, mãos para as nuvens e pés para o inferno.

Além disto, chora a comunidade em ser vista apertada feito uma arca em mar de  almas tormentosas, cuja tarefa de sonhar por tempos melhores está entregue ao próprio tempo. Cada morte, um alívio, um tributo ao deus da morte, Thanatos, momentaneamente satisfeito.

Seguramente os ratos que vieram – e trouxeram a peste – protagonizaram a ideia rastejante do suplício que lhes competia. Como pequenos sísifos, certamente são indumentárias que cobriam o inconsciente litúrgico do pai dos males que atavicamente retorna: o desprezo ao gozo da vida plena.

Ser dominado por tiranos é, por seguinte, a grande peste da humanidade. São formados por ratos – não homens – como o soberano do Leviatã, e neles a peste flui acima de todo esforço, como Sísifo mesmo – tão caro a Camus – porque ainda são muitos e parecem pequenos, mas produzem o extermínio via pedra que vem morro abaixo.

Eles e sua peste trazem a solidão e odeiam o enlaçamento comunal, e são capazes de matar por ela. O demônio da partilha lhes deu bíblia própria, onde constroem os altares de mármores que julgam sua valhalla e lhes darão o  jardim das delícias.

O absurdismo, pois, rasteja nos esgotos das mentes de Orã, exatamente porque vem do plural de Wahra (“leão”), então os leões foram dominados pelos ratos, esse é o castigo da indolência, a punição por não querer ser-se na plenitude do humanitas.

De qualquer forma, o hábito de não viver já existia. O desejo é assentado na incapacidade de superar o objeto do desejo de si mesmo. Isto é intolerável para a sacralidade da vida.

[email protected]

Comentários