A ONDA DO MEIO DA PIRÂMIDE

GAUDÊNCIO TORQUATO

A ONDA DO MEIO DA PIRÂMIDE

O clima eleitoral estará mais elevado nos próximos meses, mesmo que as aflições sociais com a pandemia se estendam até o fim do ano e continuem a influir na agenda política de 2022. A inferência se faz oportuna: o coronavírus será o grande eleitor em outubro do próximo ano. E mais: servirá para elevar o tom da tuba de ressonância que se formará nos próximos tempos, adensando o fenômeno social que vimos por ocasião da polarização entre Bolsonaro e o PT em 2018.

Inicialmente, é oportuno mostrar que se viu por aqui no último pleito um conjunto de situações assemelhadas ao quadro eleitoral norte-americano, com a eleição de Donald Trump. Thomas Frank, respeitado analista político, argumenta que o megaempresário foi eleito por “conservadores em um movimento de contrarreação”. Nesse rolo compressor social, movido à contrariedade em relação ao status quo, reuniram-se norte-americanos brancos, parcela da classe operária, parcela das classes médias, faixas que sentiram perda de status e de renda.

A raiva, indignação, a constatação de que o bolso se esvaziava, não dando para cumprir obrigações com a família – alimentação, saúde, educação – motivaram a identificação desses grupos com Deus, com as Forças Armadas e com os valores pátrios, principalmente aqueles com foco na defesa do emprego e contrários à invasão do território por estrangeiros. Afastando-se de suas associações de referência, aquelas que defendiam seus interesses, refugiaram-se numa asa do partido republicano. Deu no que vimos, Trump na Casa Branca.

Por aqui, os sentimentos difusos confluíram para a via conservadora, onde se abrigam núcleos religiosos, com destaque para os credos evangélicos, as Forças Armadas e a defesa dos eixos centrais da família, sob um clima geral de rechaço ao lulopetismo, cuja identidade ficou intensamente rompida e suja ante os escândalos da operação Lava Jato massivamente expostos pela mídia nacional. Bolsonaro canalizou a contrariedade, transformando-se em extensão dos contingentes que se mostravam dispostos a “aceitar tudo contra o PT”. O capitão não foi eleito por suas qualidades, mas pelos erros e defeitos de outros.

Em 2022, a polarização voltará a se repetir? Lembrando que, em política, tudo é possível, é mais plausível, porém, acreditar que o cenário terá matizes diferentes. Uma análise sobre a realidade: o governo Bolsonaro não tem entregue o que prometeu. A mudança política, conceito inspirador de todos os governos, não se realizou. O acordo com o Centrão lembra o mesmo tipo de compromisso de administrações passadas. O presidente, em vez de moderar e modular sua linguagem e adotar uma postura de equilíbrio e harmonia, é fator de permanente tensão. Parece governar apenas para sua base.

Ora, no vácuo que se reabre no meio social, os mais espertos sobem aos palanques com o velho-novo discurso da esperança. Lula, o metalúrgico, de réu se transforma em vítima. E ganha alta visibilidade, mostrando-se (quem diria!) a voz do bom senso. Tudo voltará à estaca zero em matéria de seus processos, mas a impressão que perpassa na sociedade é a de que Lula é inocente, vitimizado pelo ódio do ex-juiz Sergio Moro a ele. Mas o rio não correrá em sua direção como em 2002 e 2006. Hoje, mesmo o STF imprimindo a marca de suspeito em Sergio Moro, será complicado para Lula vestir o manto de candidato. As águas são outras.

Nesse ponto, convém levantar o painel de fundo que acolhe o “animus animandi” nacional. Percorre os estratos da pirâmide social um sopro que varre o déjà vu, a sensação de coisa dita e repetida, os velhos e novos escândalos, antigas promessas embaladas no celofane da mentira, refrãos e slogans batidos. Portanto, como em 2018, constata-se intensa indignação. O cobertor social, geralmente agasalhador, mostra-se curto. A lenga-lenga governamental não para de cantar loas ao próprio umbigo.

A vontade de passar uma borracha não terá como foco apenas um lado, com tiros em uns e livrando outros. Todos serão alvo. Portanto, lulopetismo e bolsonarismo serão cara e coroa de uma moeda que perde valor. O nível de consciência crítica subiu alguns centímetros. Classes médias (B e C) formarão um remoinho com força para mover as águas das margens. Os núcleos organizados – a miríade de organizações não governamentais, principalmente as de profissionais liberais (médicos, advogados, economistas, engenheiros, enfim, os integrantes das forças produtivas) – atuarão na linha de frente, construindo uma gigantesca fortaleza, de onde emergirão inputs e ecos do pensamento social.

Essa é a razão que nos leva a enxergar um ponto no meio do arco ideológico capaz de aglutinar a vontade da maioria

Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político. Twitter @gaudtorquato

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