A lição do guarda

João Carlos Ramos 

A manchete de maior destaque nas mídias sociais durante a semana passada foi o episódio dantesco ocorrido entre o desembargador e o guarda municipal de Santos, São Paulo. 

Sabemos que desembargador é o magistrado dos tribunais de segunda instância, na Justiça estadual do Brasil. Possuem competência para rever as decisões dos juízes de direito de primeira instância.

Na esfera do poder Judiciário, estão hierarquicamente, abaixo dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Leiamos o que disse o Exmo. Sr. ministro Marco Aurélio Mello: "Fiquei estarrecido com a carteirada que o desembargador paulista  Eduardo Siqueira tentou aplicar no guarda municipal da cidade de Santos, Cícero Hilário Neto. A autoridade na rua é o guarda, não o desembargador. O caso exige punição do magistrado" (UOL 21/07/2020 - 5h15). Foi largamente noticiado que o ilustre guarda, cumprindo seu dever para o qual foi concursado para exercer sua digna função, multou o magistrado, por desobedecer à lei, andando sem máscara em local público, em plena pandemia da covid-19. O referido o humilhou de todas as formas imagináveis e, inclusive, rasgou a multa, chamando-o de analfabeto. A seguir, ligou para o superior do guarda, a fim de o intimidar. Tudo foi filmado e o guarda agiu como um monge eremita, mantendo o silêncio, recomendado pelos   sábios na hora do perigo.

O guarda teria que trabalhar aproximadamente dois anos para receber o salário mensal do orgulhosíssimo  desembargador. Como dizem na gíria: "o bicho está pegando para o dito cujo”...

O grande poeta dos escravos, Castro Alves, diz em seu famoso poema "Ode ao dois de Julho": "Era o porvir – em frente do passado. A liberdade – em frente à escravidão. Era a luta das águias – e do abutre. A revolta dos pulsos – contra os ferros. O pugilato da razão – contra os erros. O duelo da treva – e do clarão”. Em outro poema diz: "Sinto não ter um raio em cada verso para escrever na fronte do perverso: "Maldição sobre vós!".  Infelizmente,  o tirano não está só. Existe uma legião de pessoas em todas as camadas sociais que se julgam  donas da verdade e acima da lei e do bom senso.

Diariamente, constatamos reclamações de pessoas extremamente humilhadas por autoridades, sem direito de defesa. Na classe médica, por exemplo, existem bacharéis que ostentam, agressivamente o "Dr.", sem possuírem  o grau de doutorado.

Vemos, também, doutores mais humildes que  enfermeiros e juízes que têm certeza que são deuses (como dizem no jargão acadêmico...). Voltando ao assunto do guarda, como ele nos deixa uma lição!...

Para que tanto orgulho, tanta prepotência dos poderosos? No ano de 2019, publiquei o famoso texto “A LIÇÃO DA OSTRA” e o assemelho à lição aqui retratada. Os inimigos da ostra (podem ser vermes, areia  etc.) atacam-na gratuitamente, e ela inicia a produção de uma substância chamada nácar, para curar as feridas.  O resultado é o melhor que poderia haver: os inimigos são sepultados naquela substância que, ao endurecer, se transforma em uma lindíssima PÉROLA. Igualmente, nossos inimigos precisam ser sepultados na substância de nosso silêncio e sabedoria, petrificados. Não nos cansa, também, relembrarmos o acontecido entre o matuto e o doutor. Ambos estavam no barco e este furou ao colidir com uma pedra. O doutor havia perguntado três vezes ao matuto se ele tinha determinados  conhecimentos  científicos e o matuto lhe disse:  ― Fui criado no mato  e não tenho estudos e o senhor, sabe nadar? ― Não! (disse o doutor).  ― Então o senhor morrerá  afogado e eu vou nadar agora para salvar minha vida.

A vida é feita de lições como a do guarda, da ostra e do matuto. O diploma é apenas um papel. O caráter constrói  o cidadão e a posteridade o aplaudirá de pé!

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