A criminalidade é preta

CREPÚSCULO DA LEI – ANO III – CXLVIII

 

Domingos Sávio Calixto - A CRIMINALIDADE É PRETA

        

         Seguramente o direito criminal é uma “caixa preta” (!) para os pesquisadores da história do poder punitivo no Brasil.

         Tal proposição resulta dos assombros acometidos aos estudiosos da literatura penal e dos documentos pertinentes ao constatarem que “direito criminal” é, na realidade, uma estética de ocultação do sistema de controle da classe econômica apoderada, com berço no latifúndio ilegítimo, na grilagem, destruição do meio ambiente e espraiada no financiamento da classe política, além de ungida pelas bênçãos da religião da moda.

         Desde a invasão e tomada destas terras de sua população originária, o direito criminal legitima a violência dos usurpadores e, guardadas as sofisticadas formas jurídicas de cada época, o latifúndio ilegítimo é o maior violador histórico de direitos humanos no país, inclusive acompanhando a própria brutalidade policial do estado que o acompanha e serve.

         Sob esse aspecto o latifúndio ilegítimo está envolvido na maior escravatura que se tem notícia na humanidade, a brasileira, superando o próprio Leopoldo II da Bélgica em crueldade e tempo de execução.

         Nessa prática estética e midiática está inserido a própria construção do termo “criminalidade”, estratégia exata nascida para rotular as práticas de inconformismo de escravos contra aquele sistema indubitavelmente degradante e desumano.

         A expressão “criminalidade” ocultava, portanto, a reação legitimada contra a opressão de escravos e libertos. Ela estava se firmando na segunda metade século XIX, exatamente por carregar consigo os temores de uma escravidão em declínio, inclusive perdendo a chancela do imperador dom Pedro II, logo depois do vergonhoso caso de erro judiciário e enforcamento de Manoel da Mota Coqueiro (Rio de Janeiro, 1855).

         Talvez o caso mais emblemático de uso da “criminalidade” tenha sido os episódios que envolveram o famigerado Preto Thomaz, honrosamente defendido em tribunal por Joaquim Nabuco ainda estagiário da faculdade de direito de Recife (Homenagem aos Acadêmicos!) e que gerou o texto do livro “A Escravidão”.

         Preto Thomaz, pernambucano de Olinda, moço de 25 anos, 1,70 de altura, solteiro, “bom trato e de boa aparência, todos os dentes na boca”, era escravo de ganho, ou seja, pagava ao seu senhor por conta de seus próprios ganhos diários como fogueteiro, e ainda sobra-lhe quantia para boa economia.

         Ocorre que foi preso por atraso no pagamento e, além de prisão, recebeu castigo de palmatória e humilhações. Jurou vingança, comprou arma e embriagou-se. Ao final, matou o juiz municipal substituto Braz Machado Pimentel em 23 de outubro de 1867. Foi nesse episódio que a ideia de “criminalidade” se alastrou para “caçá-lo”.

         Quatro dias depois, foi o próprio Thomaz quem se entregou. Novos maus-tratos, humilhações e chibatadas (300) públicas. Outra tentativa de fuga com uso de faca, a qual resultou na morte de um dos guardas, perseguições em via pública e recaptura. Todos assustados com aquela “criminalidade”.

         Antes da execução de sua pena de morte, Preto Thomaz morreu na prisão, em decorrência de insalubridade e, claro, maus-tratos sistemáticos, em 30 de maio de 1871. Ele morreu, mas a “criminalidade” no Brasil nascia.

 

 

 

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